Qualquer treinador com o currículo de Renato Gaúcho poderia, ou deveria, ficar ressabiado com uma proposta do Flamengo neste momento. Mesmo sendo o atual bicampeão brasileiro. Porque o que fizeram com Rogério Ceni foi covardia. Pura e simples. Um treinador que ganhou três títulos em exatos oito meses e teve, sim, momentos de bom futebol. Na arrancada entre as vitórias sobre Palmeiras e Internacional que deram o título brasileiro, no início da temporada 2021, especialmente no jogo contra o Palmeiras pela Supercopa do Brasil. E até no início da sequência com desfalques agora, contra Coritiba e América. Não como o time de 2019, a única régua de muitos para avaliar a equipe atual, mas o suficiente para se manter no cargo.
Alegar que Ceni é arrogante não justifica. Ele é assim desde os tempos de jogador. E reclamar dos últimos resultados é um absurdo, já que o próprio técnico avisou que seria complicado com tantos desfalques e sem contratações. Prometeram respaldo e foram covardes diante da pressão desproporcional da torcida nas redes sociais. Dos que acharam que com Vitinho e Michael nas vagas de Everton Ribeiro e De Arrascaeta a criatividade tinha que ser a mesma. Página virada, chega Renato Gaúcho. Veterano, conhece o modus operandi do futebol brasileiro. E realiza o sonho de treinar o Flamengo. Não é seu time de coração, nem o clube em que é o maior ídolo. Mas a relação sempre foi especial, mesmo com amor e ódio envolvidos.
Nos tempos de jogador foi ovacionado, mas também execrado. Individualista, atrapalhava o time quando não estava voando fisicamente. E algumas vezes provocou rivais sem se garantir no campo. Em 1990, passou uma semana chamando o Fluminense de "time pequeno" e, nervoso, quis resolver tudo sozinho no clássico do domingo, pelo returno do estadual. O Flu venceu por 1 a 0 e Renato acabou vaiado pelas duas torcidas. Este que escreve estava lá.
Mas ganhou títulos e fez história. Porque tem a cara do Flamengo. Fanfarrão, bravateiro, vaidoso, caótico, sedutor. Considera o clube o topo do futebol brasileiro, só abaixo da seleção brasileira. Durante sua carreira de jogador, quando estava em outros clubes sempre pensava em voltar para a Gávea.
Em 1995, correu uma história pelas rádios do Rio de Janeiro que nunca foi confirmada pelas partes e será exposta aqui não como fato, mas para ilustrar essa imagem do Renato muito ligado ao Flamengo:
Um amigo em comum, a pedido de Renato, teria sondado o então presidente Kléber Leite sobre a possibilidade de retornar ao clube no timaço que o dirigente pretendia montar. A resposta de Kléber teria sido que, com Romário contratado, Sávio e a intenção de ir atrás de Edmundo, Renato "não teria nível" para jogar naquele ataque. Mordido, o Gaúcho foi para o Fluminense e o resto é história, com gol de barriga e coroa de "Rei do Rio". Mas depois voltaria, com o próprio Kléber, para substituir Romário no Brasileiro de 1997.
Agora o treinador vem com a missão de fazer o time atual ser competitivo e jogar bonito, como o Grêmio nos melhores momentos dos últimos anos. Sem a sombra de Jorge Jesus, até porque se o português fosse o parâmetro, não contratariam o técnico que levou 5 a 0 em 2019 e saiu humilhado do Maracanã com um massacre tático e ridicularizado pelas falhas de marcação nas bolas paradas.
Renato chega como o boleiro que vai domar as feras no vestiário, enquanto o auxiliar Alexandre Mendes trabalha para executar o plano de jogo. Pode repetir 2016, recebendo no Grêmio um trabalho estruturado de Roger Machado para acrescentar liderança e fazer ajustes importantes.
Algumas questões terão que ser revistas, como os encaixes com perseguições individuais que Filipe Luís, por exemplo, não tem mais gás para executar. Também a cultura "copeira" de privilegiar mata-mata e deixar o Brasileiro de lado. Até porque há um inédito tricampeonato em disputa.
Mas é justamente a alegria e a motivação de voltar ao Rio de Janeiro e realizar um sonho que podem empurrar Renato Gaúcho para um bom trabalho no Flamengo. Este colunista não faz muita fé, mas em 2017 queimou a língua com o Grêmio campeão da Libertadores e não vai se arriscar novamente. O futebol brasileiro, o clube e o personagem em questão têm suas lógicas próprias.
Só acabou a desculpa. Agora o time "de 200 milhões" que tratava como imbatível quando comandava o Grêmio está em suas mãos. Ainda com oito jogadores de 2019 e força suficiente para continuar disputando os principais títulos.
Renato pode acabar nos braços da torcida, como na Copa União 1987 e na Copa do Brasil de 1990, ou questionado e zoado, como acontecia até bem pouco tempo atrás, nos jogos festivos de Zico no Maracanã a cada final de ano. A única certeza é de que não haverá tédio nessa relação. Como sempre foi.
Na reunião que selou o negócio, Renato estava de chinelos, já que tinha acabado de sair da praia. A foto que ilustra este texto simboliza bem a intimidade entre treinador e clube. Emblemática.