Dois remédios de tarja preta derivados da anfetamina e indicados para o tratamento do déficit de atenção bateram recorde de vendas nas farmácias brasileiras em 2019.
Os dados dos últimos nove anos foram obtidos com exclusividade pelo R7 junto ao SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados), órgão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Um deles é o metilfenidato, cujo nome comercial mais conhecido é Ritalina.
O outro é a lisdexanfetamina, vendido no país sob a marca Venvanse.
As vendas destes dois psicoestimulantes somaram 2,85 milhões de caixas no ano passado, após alta de 20,9% em relação a 2018 (veja o infográfico abaixo).
Na comparação com 2011, ano mais antigo em que há dados disponíveis, o aumento das vendas foi de 111%.
O médico psiquiatra Rodrigo Martins Leite, do IPq (Instituto de Psiquiatria) do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), explica que essas medicações são destinadas a pessoas que sofrem de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), normalmente diagnosticado na infância.
"Existe um boom de diagnósticos de TDAH que talvez não sejam propriamente transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. O TDAH clássico é detectado na infância. A criança já tem dificuldades desde o início da vida estudantil: repetências, dificuldades bastante evidentes.
O TDAH que se inicia na vida adulta não tem comprovação na literatura científica. Às vezes, a gente observa em consultório pessoas que têm mestrado, doutorado e que se dizem desatentas. Mas isso não bate com a descrição clínica clássica de TDAH, que é justamente esse perfil de dificuldade desde o início da alfabetização."
A Ritalina e o Venvanse só podem ser vendidos mediante notificação de receita do grupo A3 (uma espécie de boleto de cor amarela), destinada à classe dos medicamentos psicotrópicos. Esse tipo de receita não é todo médico que possui rotineiramente.
Isto significa que os dados mencionados nesta reportagem abordam apenas a venda legal destas duas drogas, mas não o que é negociado no mercado paralelo. Diversos sites vendem clandestinamente os remédios sem prescrição.
O grande problema desses dois medicamentos, segundo especialistas, é que pessoas que não precisariam deles estão consumindo na expectativa de melhorar o desempenho cognitivo.
"Aumenta a concentração, diminui a distração. Ou seja, você produz mais", explica a farmacêutica Danyelle Marini, membro da diretoria do CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo).
Por esta razão, são comumente utilizados por estudantes universitários e concurseiros como forma de melhorar o desempenho.
"É uma coisa que já vinha caminhando nos últimos anos, principalmente, entre pessoas que estavam engajadas em prestar concursos públicos, já é uma prática mais ou menos clássica, — de usar esse tipo de medicamento para turbinar o estudo, aguentar a privação de sono. Mas acho que agora isso se disseminou mais ainda, até por causa da popularização do diagnóstico de TDAH de forma mais abrangente", explica o psiquiatra do IPq.
A ideia de uma melhora de rendimento nas atividades diárias nem sempre se confirma, observa o médico.
"Ela tem noção de que está produzindo mais, mas não necessariamente isso está se traduzindo em dados concretos. A pessoa pode cair em um autoengano de que está tendo benefícios. O problema é que essas medicações induzem um grau de bem-estar, as pessoas se sentem mais confiantes. A questão da autoconfiança acaba se tornando um ponto muito difícil de convencer a pessoa reduzir, substituir ou rever isso."
Danyelle faz ainda uma relação entre a proibição, em 2011, de medicamentos como anfepramona, femproporex, entre outros usados para emagrecer, com o aumento das vendas do Venvanse.
Em 2014, o Congresso derrubou a resolução da Anvisa, que em seguida editou novas regras, ainda assim mantendo restrita a venda dos medicamentos chamados anorexígenos.
A lisdexanfetamina foi liberada pela Anvisa em julho de 2010. No ano seguinte, foram vendidas 11.065 caixas. Em 2012, foram 51.352: aumento de quase 364%. Em 2019, os dados mostram vendas de 616,3 mil caixas.
Segundo a farmacêutica, cerca de 40% das pessoas que tomam tanto o Venvanse como a Ritalina relatam diminuição do apetite. A diferença é que o primeiro tem um efeito prolongado (de 8 a 12 horas).
Além do TDAH, o Venvanse também é indicado para adultos com TCA (transtorno de compulsão alimentar), desde que diagnosticado por um médico que acompanhe o tratamento.
"Como a anfetamina hoje está liberada para comercialização de uma maneira bem complicada, as pessoas acabaram usando ele [Venvanse], por causa desse efeito colateral [diminuição do apetite]."