Venda de remédios derivados de anfetamina bate recorde no Brasil

Anvisa registra compras de 2,85 milhões de caixas de psicoestimulantes em farmácias do país no ano passado: aumento de 20,9% em relação a 2018

Dois remédios de tarja preta derivados da anfetamina e indicados para o tratamento do déficit de atenção bateram recorde de vendas nas farmácias brasileiras em 2019.


Os dados dos últimos nove anos foram obtidos com exclusividade pelo R7 junto ao SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados), órgão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).


Um deles é o metilfenidato, cujo nome comercial mais conhecido é Ritalina.


O outro é a lisdexanfetamina, vendido no país sob a marca Venvanse.


As vendas destes dois psicoestimulantes somaram 2,85 milhões de caixas no ano passado, após alta de 20,9% em relação a 2018 (veja o infográfico abaixo).


Na comparação com 2011, ano mais antigo em que há dados disponíveis, o aumento das vendas foi de 111%.


'Boom de diagnósticos'

O médico psiquiatra Rodrigo Martins Leite, do IPq (Instituto de Psiquiatria) do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), explica que essas medicações são destinadas a pessoas que sofrem de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), normalmente diagnosticado na infância.


"Existe um boom de diagnósticos de TDAH que talvez não sejam propriamente transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. O TDAH clássico é detectado na infância. A criança já tem dificuldades desde o início da vida estudantil: repetências, dificuldades bastante evidentes.


O TDAH que se inicia na vida adulta não tem comprovação na literatura científica. Às vezes, a gente observa em consultório pessoas que têm mestrado, doutorado e que se dizem desatentas. Mas isso não bate com a descrição clínica clássica de TDAH, que é justamente esse perfil de dificuldade desde o início da alfabetização."


A Ritalina e o Venvanse só podem ser vendidos mediante notificação de receita do grupo A3 (uma espécie de boleto de cor amarela), destinada à classe dos medicamentos psicotrópicos. Esse tipo de receita não é todo médico que possui rotineiramente.


Isto significa que os dados mencionados nesta reportagem abordam apenas a venda legal destas duas drogas, mas não o que é negociado no mercado paralelo. Diversos sites vendem clandestinamente os remédios sem prescrição.



Queridinho dos concurseiros

O grande problema desses dois medicamentos, segundo especialistas, é que pessoas que não precisariam deles estão consumindo na expectativa de melhorar o desempenho cognitivo.


"Aumenta a concentração, diminui a distração. Ou seja, você produz mais", explica a farmacêutica Danyelle Marini, membro da diretoria do CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo).


Por esta razão, são comumente utilizados por estudantes universitários e concurseiros como forma de melhorar o desempenho.


"É uma coisa que já vinha caminhando nos últimos anos, principalmente, entre pessoas que estavam engajadas em prestar concursos públicos, já é uma prática mais ou menos clássica, — de usar esse tipo de medicamento para turbinar o estudo, aguentar a privação de sono. Mas acho que agora isso se disseminou mais ainda, até por causa da popularização do diagnóstico de TDAH de forma mais abrangente", explica o psiquiatra do IPq.


A ideia de uma melhora de rendimento nas atividades diárias nem sempre se confirma, observa o médico.


"Ela tem noção de que está produzindo mais, mas não necessariamente isso está se traduzindo em dados concretos. A pessoa pode cair em um autoengano de que está tendo benefícios. O problema é que essas medicações induzem um grau de bem-estar, as pessoas se sentem mais confiantes. A questão da autoconfiança acaba se tornando um ponto muito difícil de convencer a pessoa reduzir,  substituir ou rever isso."


Inibidores de apetite


Danyelle faz ainda uma relação entre a proibição, em 2011, de medicamentos como anfepramona, femproporex, entre outros usados para emagrecer, com o aumento das vendas do Venvanse.


Em 2014, o Congresso derrubou a resolução da Anvisa, que em seguida editou novas regras, ainda assim mantendo restrita a venda dos medicamentos chamados anorexígenos.


A lisdexanfetamina foi liberada pela Anvisa em julho de 2010. No ano seguinte, foram vendidas 11.065 caixas. Em 2012, foram 51.352: aumento de quase 364%. Em 2019, os dados mostram vendas de 616,3 mil caixas.


Segundo a farmacêutica, cerca de 40% das pessoas que tomam tanto o Venvanse como a Ritalina relatam diminuição do apetite. A diferença é que o primeiro tem um efeito prolongado (de 8 a 12 horas). 

Além do TDAH, o Venvanse também é indicado para adultos com TCA (transtorno de compulsão alimentar), desde que diagnosticado por um médico que acompanhe o tratamento.


"Como a anfetamina hoje está liberada para comercialização de uma maneira bem complicada, as pessoas acabaram usando ele [Venvanse], por causa desse efeito colateral [diminuição do apetite]."


Efeitos semelhantes aos da cocaína e dependência


Por serem estimulantes do SNC (sistema nervoso central), os medicamentos derivados da anfetamina atuam de uma maneira parecida com a cocaína.


Os pacientes podem experimentar aumento da frequência cardíaca, tremores, boca seca, mais disposição, irritabilidade, ansiedade, entre outros.


"O mecanismo farmacológico é similar ao da cocaína e do crack, é uma substância dopaminérgica, guardadas as devidas proporções", diz Martins Leite.


Uma das grandes preocupações é que, assim como a cocaína, as drogas psicoestimulantes vendidas nas farmácias também podem matar.


"Ele [medicamento] aumenta a frequência cardíaca porque aumenta os neurotransmissores, a noradrenalina em especial. Ele não aumenta só no SNC, aumenta de maneira periférica também, o que aumenta a pressão arterial, causa tremores e aumenta a frequência cardíaca. Pode levar a um óbito súbito, principalmente que já têm pressão alta ou é cardiopata", alerta a diretora do CRF-SP.


A farmacêutica explica que o metilfenidato e a lisdexanfetamina elevam a presença de três neurotransmissores no sistema nervoso central: dopamina, serotonina e noradrenalina.


A dopamina está ligada ao aprendizado, mas principalmente ao sistema de recompensa do cérebro. Desta forma, quando há liberação desse neurotransmissor existe também aumento da sensação de prazer.


É aí que surge o risco da dependência dos psicoestimulantes. Não à toa, as embalagens e bulas destes tarjas pretas trazem o alerta.


"As anfetaminas têm sido alvo de extenso uso abusivo. O abuso pode levar à tolerância e dependência psicológica com diferentes graus de comportamento anormal. Os sintomas de abuso de anfetaminas podem incluir dermatoses, insônia, irritabilidade, hiperatividade, labilidade emocional e psicose. Foram relatados sintomas de abstinência como fadiga e depressão", consta na bula do Venvanse.


A bula da Ritalina alerta que "se usado de forma inadequada, este medicamento pode causar dependência", ao ressaltar que é indicado somente a pacientes com TDAH.


"A principal complicação psiquiátrica do uso dessas substância são os quadros ansiosos: crise de pânico, transtorno de ansiedade generalizada. E outro grupo de condições que podem ser agravadas são os transtornos de humor: depressão unipolar e transtorno bipolar. Essas pessoas podem vivenciar uma desestabilização do humor até com consequências potencialmente graves para o indivíduo e para quem está em volta", adverte o médico do IPq.


Outro alerta feito pelo psiquiatra envolve adolescentes, pois existe o risco de uso concomitante da medicação com álcool e outras substâncias. "O desfecho disso a gente não tem como prever com segurança."

Necessidade de transparência


O R7 demorou cerca de oito meses para conseguir, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados que, segundo os especialistas ouvidos, deveriam estar disponíveis periodicamente para a sociedade.


O médico do Instituto de Psiquiatria da USP observa que sem as informações sobre o consumo dessas substâncias, não é possível planejar políticas públicas para evitar problemas no futuro.


"Acho que a gente está vivendo um fenômeno análogo ao que acontece nos Estados Unidos, onde existe uma crise das anfetaminas por conta deste mercado bastante crescente. Acho que o Brasil está começando a reproduzir esse padrão agora de uma forma mais clara."


Por fim, Martins Leite ressalta que não há um remédio capaz de melhorar o desempenho sem oferecer riscos.


"A busca do consumidor é sempre por uma pílula que vá trazer felicidade ou ganho de capacidade. Mas a gente como profissional da saúde, formador de opinião, precisa realmente adotar uma posição crítica em relação a isso e alertar a sociedade sobre os riscos e benefícios. Sem dúvida, para quem tem TDAH, essa classe de medicamentos está mais do que indicada. Mas existem muitas pessoas que podem ter outras condições de saúde mental que determine algum grau de perda de performance cognitiva e tentam suprir isso de uma forma que não é a mais segura."


Fonte Site (R7)

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